quarta-feira, 14 de abril de 2010

Carcinogênese.

A palavra carcinogênese é derivada do grego, língua na qual karkinos significa câncer e genesis significa produção ou origem, portanto é o termo utilizado para produção de carcinoma. Já carcinogenicidade se refere ao poder, habilidade ou tendência para produzir câncer. A principal meta do estudo da carcinogênese é, sem dúvida alguma, a prevenção do câncer.

A primeira observação de que a produção de tumor maligno era influenciado por substâncias exógenas foi feita por Percival Pott, médico inglês, em 1775, quando relacionou o câncer de bolsa escrotal ao contato freqüente dos limpadores de chaminé com a fuligem. Devido a suas observações foram introduzidas, a partir dessa época, medidas preventivas, como proteção contra fuligem, mudança de arquitetura das casas e proibição de utilizar crianças para essa atividade. Até o desenvolvimento pela primeira vez de câncer experimental em coelho, com o uso alcatrão, por Yamagiwa & Ichikawa, em 1915, vários agentes foram descritos como carcinogênicos para o homem: arsênico (1888), luz solar (1875), alcatrão (1876), raio X (1902) e radiação ultravioleta (1906). Essas descrições levaram à tentativa de proteção contra carcinoma ocupacional provocados por outras substâncias industriais e agentes físicos.

Dependendo da formação do indivíduo, o câncer pode ser considerado como um evento molecular, acidente embriológico, predisposição genética, deficiência imunológica, dano ambiental, desafio epidemiológico, ou mesmo um ato de Deus; no entanto, é processo multifatorial, que envolve uma interação complexa de fatores endógenos e exógenos, a maior parte deles ainda por elucidar.

Por estudos experimentais, já se sabe que a carcinogênese química não é um fenômeno espécie-específico, sendo necessárias estruturas moleculares específicas e ocorre em estágios bem separados, de iniciação ou indução, promoção e progressão. Existem vários carcinógenos ambientais prejudiciais ao homem, que podem ser parciais ou completos, como é a radiação ultravioleta B.

A carcinogênese na pele, por ter fácil acesso sem prejudicar o resto do organismo, tem sido bastante estudada quanto à avaliação de substâncias ou agentes físicos, concentração ou dose, freqüência de aplicação, entre outros fatores que muito influem no desenvolvimento dos carcinomas.

As diversas etapas da carcinogênese foram primeiramente descritas por Friedewald & Rous (1944) e confirmadas por Deelman (1964). O estágio inicial, chamado de indução ou iniciação, ocorre por um efeito carcinogênico inicial, quando há alteração do DNA, RNA ou proteínas específicas. Vários agentes podem atuar nessa fase, sendo chamados de indutores. O estágio seguinte é o de promoção, com alterações da dinâmica da divisão celular ou do meio intracelular, provocada pelos promotores. A partir daí pode haver progressão ou mesmo regressão do tumor quando já instalado.

A indução é um fenômeno irreversível, pois há interação e incorporação de fragmentos da molécula do carcinógeno ao DNA, ao RNA ou às proteínas específicas. A expressão do genoma da célula se modifica e essa alteração é então transmitida da célula-mãe para célula-filha, ocorrendo, portanto, reprodução celular com genoma alterado. As moléculas de alguns carcinógenos, como os agentes alquilantes, apresentam alta reatividade com centro nucleofílico das células, comportando-se como potentes carcinógenos cutâneos indutores. Outros, entre eles os hidrocarbonetos aromáticos polinucleares, são inativos, porém penetram rapidamente na célula epidérmica e pela ação de oxidases de função mista intracelulares transformam-se em indutores tumorais potentes.

Na fase de promoção, atuam, entre outros a antralina, fenol, ácido peracético, certos detergentes, hidrocarbonetos alifáticos saturados, álcoois graxos, vírus, radiações e traumatismos. Em geral são potentes irritativos da pele ou agentes que solubilizam gorduras, talvez por solubilizarem os lipídios das membranas celulares. Parecem alterar o ambiente dentro da célula, daí ser um fenômeno reversível.

A derme parece ter um importante papel na gênese dos tumores epidérmicos, o que poderia explicar sua alta freqüência em cicatrizes, queimaduras, lupus vulgar crônico, epidermolise bolhosa distrófica crônica e locais de aplicação de vacinas; além disso, alterações do tecido conjuntivo, fatores ambientais e deficiência imunológica, por si só não justificam os carcinomas basocelulares da síndrome do nevo basocelular ou a alta incidência de transformação maligna do nevo sebáceo.

Os fatores considerados etiológicos e/ou precipitantes dos cânceres cutâneos são vários, como predisposição genética; radiação ultravioleta; radiação não ultravioleta, como raio X e radiação gama; fatores hormonais; imunossupressão; agentes químicos e drogas citotóxicas; traumatismos; papilomavírus; queimaduras crônicas, cicatrizes, úlceras, fístulas, osteomielite crônica, albinismo. As lesões de lupus eritematoso e os granulomas de longa duração, como da tuberculose, hanseníase e sífilis, podem desenvolver carcinomas baso e espinocelulares. A poroceratose de Mibelli, epidermolise bolhosa distrófica, líquen escleroso e atrófico, epidermodisplasia verruciforme e condiloma acuminado gigante de Buschke-Lowenstein podem levar a espinocelulares. No xeroderma pigmentoso surgem precocemente e, em geral ainda na infância, carcinomas baso e espinocelulares, além de melanomas. O nevo sebáceo de Jadassohn, que tem maior freqüência na cabeça, pode desencadear carcinomas basocelulares e raramente espinocelulares, enquanto no tricoepitelioma múltiplo surgem apenas carcinomas basocelulares.

Há ainda algumas lesões consideradas como pré-cancerosas, que são a ceratose actínica, com sua variante, o corno cutâneo, leucoplasia, doença de Bowen, e eritroplasia de Queyrat. A ceratose seborréica e o ceratoacantoma são também considerados como pré-canceroses por alguns autores, mas se realmente o forem, a freqüência de transformação maligna é muito pequena.

A predisposição genética como fator etiológico pode ser verificada pela maior incidência de câncer cutâneo em indivíduos de pele clara, que têm dificuldade de bronzeamento, ou seja, aqueles que queimam, mas não bronzeiam. Além disso, as doenças hereditárias já mencionadas comprovadamente levam ao câncer cutâneo precoce, como é o caso do xeroderma pigmentoso, doença genética autossômica recessiva rara, na qual o paciente tem uma maior sensibilidade à radiação ultravioleta e a alguns químicos, além de alteração do mecanismo de reparo do DNA. Com exposições mínimas ao sol, surgem sardas, queimaduras, ceratoses actínicas múltiplas, carcinomas baso e espinocelulares e melanomas, além de apresentarem fotofobia, entrópio, ectrópio, ceratites e carcinoma no olho, pela alteração das áreas expostas. Cinqüenta por cento dos pacientes já mostram alterações cutâneas antes de um ano de idade e câncer aos oito. Há um fenótipo de xeroderma pigmentoso típico com reparo normal do DNA, mostrando, portanto, que não só esse fenômeno interfere na gênese dessa doença.

A síndrome de Gorlin, síndrome do nevo basocelular ou do carcinoma basocelular nevóide, é doença autossômica dominante, onde há surgimento de carcinomas basocelulares precocemente em área exposta e não exposta à luz solar, pits palmo-plantares, cistos mandibulares, alterações ósseas e do sistema nervoso central, além de tumores internos, como meduloblastoma e fibromas ovarianos.

Carcinomas basocelulares faciais múltiplos na infância estão também presentes na síndrome de Bazex, doença autossômica dominante, caracterizada por, além desse tipo de tumor maligno cutâneo, hiperceratose folicular nos membros, pili torti e atrofodermia vermiculada da face.

Na comprovação da predisposição genética já se sabe que os cânceres humanos contêm seqüências de DNA, chamados oncogens, que são iguais aos encontrados nas neoplasias de animais. Os oncogens são genes presentes na célula humana associados ao desenvolvimento do câncer quando 'ligados' e\ou expressos por translocação cromossômica. Surgem no tumor benigno de camundongo, quando de sua transformação em maligno, e estão presentes em lesões pré-malignas e malignas. São denominados de proto-oncogens, quando presentes na pele normal e ao serem 'ligados' passam a se chamar de oncogens. Estudos evidenciaram que há um oncogen semelhante ao fator de crescimento tumoral derivado de plaquetas (PDGF) e que há receptores para fator de crescimento epidérmico (EGF) em 100% dos basos e espinos. O gene p53 é a anormalidade genética mais comum no câncer humano, ocorrendo em mais de 50% dos carcinomas espinocelulares cutâneos e seu surgimento é um evento precoce na transformação maligna, precedendo a invasão. Alguns autores sugerem que a variação quantitativa dos oncogens talvez esteja relacionada à agressividade biológica dos tumores.

Os traumatismos podem localizar ou promover o aparecimento de tumor na pele previamente exposta a outro estímulo carcinogênico. Tumores malignos são encontrados com certa freqüência em locais de pequenas queimaduras, de penetração de instrumento quente; já tendo sido encontradas até farpas de madeira sob carcinoma espinocelular.

A imunossupressão altera a vigilância que destrói células mutantes malignas e sua influência carcinogênica é evidente na Aids pela deficiência imunológica, onde é grande a freqüência de cânceres de vários tipos, linhagens e localizações. Há autores que sugerem aumento do efeito carcinogênico da ultravioleta nessa infecção. Nos transplantados renais, também pelo uso de drogas imunossupressoras, há potencialização de outros carcinógenos, como o sol, levando a uma grande freqüência de câncer da pele em áreas expostas. Quarenta e dois por cento desses pacientes, três a cinco anos após o transplante, apresentam um ou mais carcinomas baso ou espinocelulares de pele, este último mais comum, maiores e mais agressivos do que na população geral. Sete por cento falecem devido a esses cânceres cutâneos. Os pacientes não-transplantados em uso de azatioprina e ciclofosfamida têm cinco vezes mais tumores malignos de pele que a população geral.

Certos sorotipos de papilomavírus humano (HPV) têm um comprovado potencial oncogênico, talvez ativando os oncogens. Há necessidade, no entanto, da interação de outros fatores para ocorrer a carcinogênese. O genoma de HPV-2 foi evidenciado em carcinomas basocelulares de dois pacientes imunossuprimidos, e os HPV tipos 16 ou 18 foram encontrados em fibroblastos, ceratinócitos e células epiteliais do cérvix, que precisam da presença de oncogens ativados para a formação de tumor. É evidente que o HPV tem papel importante na carcinogênese em genitais, pés e mãos. Nos genitais, o herpes simples, outros organismos sexualmente transmitidos, fumo e estrógenos podem atuar como co-carcinógenos. Foi verificado que o DNA do HPV tem localização extracromossomal nas verrugas benignas e intracromossomal, nas displásicas e malignas.

Agentes químicos, como hidrocarbonetos (fuligem, alcatrão, óleos), drogas citotóxicas e muitas outras, são carcinogênicas, tanto para o homem quanto para animais. O arsênico só tem sido observado provocando câncer no homem. Essas substâncias, que são tão diferentes entre si, transformam-se, na sua maior parte, no carcinógeno ativo, por ativação através do sistema enzimático celular. A pele dos primatas é muito resistente a carcinógenos químicos; sendo difícil provocar câncer experimental ou natural tanto no macaco quanto no homem, às vezes mesmo com carcinógeno potente por até dez anos.

O arsênico provoca lesões múltiplas semelhantes à doença de Bowen, carcinomas espino e basocelulares do tipo nodular e multicêntrico superficial, mais freqüentemente em áreas não expostas ao sol como tronco e nádegas, além de outros tumores malignos da pele e\ou vísceras. Foi de uso médico, como licor de Fowler no século passado, além de ter havido exposição de grandes populações, tanto na indústria como pela ingestão de água contaminada com pesticida. Na costa sudoeste de Taiwan, mais de 160 mil habitantes ingeriram água potável de uma mina contaminada com 0.8 a 2.5 partes por milhão de arsênico. Dessa população, todos os homens e noventa e seis por cento das mulheres depois dos setenta anos, apresentaram hiperpigmentação típica e ceratoses palmares. A incidência de câncer cutâneo foi de 25 a 30 vezes maior que nos países do oeste, e sete vezes, que na população em geral.

O cigarro contém seis partes de arsênico por milhão, além de mais de mil e quinhentos componentes diferentes. Sua ação carcinogênica é evidente no lábio e boca, sendo que o fumante tem risco duas vezes maior de desenvolver carcinoma espinocelular cutâneo que o não fumante. Não parece, no entanto, levar a uma maior incidência de basocelulares e o mecanismo é, até hoje, desconhecido.

Os agentes físicos, como o calor, provocam carcinoma nas pernas, como é o caso de indivíduos que ficam muito próximos de brasas acesas. A luz solar provoca câncer na pele exposta. A maior exposição ocorre quanto maior a altitude e menor a latitude, havendo uma correlação inversa entre o grau de pigmentação e a habilidade de bronzeamento. As mulheres tem a metade do número de cânceres cutâneos e só uma maior exposição solar não parece explicar essa maior incidência, daí se aventar a possibilidade de interação com fatores hormonais.

A radiação ultravioleta é mais prejudicial em regiões de clima seco e ensolarado e o fotoenvelhecimento sempre precede o câncer. O efeito do sol é cumulativo, o da ultravioleta é maior quando aplicada em frações, e é proporcional à dose acumulada. A puvaterapia, tipo de tratamento que utiliza o efeito da ultravioleta após administração de psoraleno por via oral, pode provocar maior incidência de carcinomas baso e espinocelulares, por seu efeito mutagênico e imunossupressivo, mais somente quando há mais de 200 exposições. Alguns anti-oxidantes protegem a pele contra carcinogenicidade da ultravioleta, talvez por prevenirem o efeito dos oxigênios singletos e dos radicais livres. A cafeína e a teofilina também tem ação, parecendo prevenir o erro no reparo durante a pós-replicação. O ácido retinóico, em concentração não tóxica e não irritativa, dependendo das circunstâncias, estimula ou inibe, e a mostarda nitrogenada e as nitrosouréias, em doses subcarcinogênicas usadas na psoríase e micose fungóide, aceleram a carcinogênese da ultravioleta.

A fotocarcinogênese é uma das manifestações de processo fotobiológico muito maior, provocando respostas locais e sistêmicas, que podem ser diretas ou indiretas. A ultravioleta B, de comprimento de onda de 290 a 320nm, tem ação fotocarcinogênica direta, levando a carcinomas baso e espinocelulares. Atua como indutora e promotora potente em camundongo, levando à alteração estrutural no DNA humano, tanto in vitro quanto in vivo. Provoca alterações mutagênicas, através de dímeros de timina, que leva a formação de tumores. Para essas mutações existem mecanismos de proteção com reparo do DNA, pela excisão do defeito, reparo na pós-replicação e fotoreativação. O tumor surge quando há ausência ou deficiência nesse reparo.

Não se tem certeza ainda se a ultravioleta A, de comprimento de onda que vai de 320 a 400nm, tem ação fotocarcinogênica direta. É indutora em animais, no homem e in vitro. Talvez atue também como promotora. Seu mecanismo ocorre através da formação de dímeros de pirimidina, que é a principal lesão do DNA, com quebra de cadeias simples, crosslinks de proteína do DNA, além de reações oxidativas com formação de radicais livres.

Indiretamente, tanto a ultravioleta A quanto a B tem ação local e sistêmica no sistema imune, por efeito imunossupressor, e, em geral, os tumores induzidos por essas radiações são altamente antigênicos. Como efeito sistêmico induzem células supressoras tumor-específicas e, como local na pele, diminuem o número de células de Langerhans, com inatividade das remanescentes. Com isso, há alteração da função de apresentação do antígeno, bloqueio da ativação da função celular efetora, levando a um bloqueio da resposta imune. Como através desse mecanismo há prevenção da rejeição do tumor, ocorre então crescimento do mesmo.

Em relação aos fotoprotetores, que são extremamente benéficos, é preciso ressaltar que a proteção apenas contra a ultravioleta B reduz a queimadura imediata, aumentando o tempo de permanência no sol e a exposição à ultravioleta A, aumentando também a incidência de câncer cutâneo. A exposição à ultravioleta A alternada com exposição a ambas, como ocorre com indivíduos que ora usam fotoprotetor apenas para ultravioleta B e ora fotoprotetor para ambas, aumenta o dano das exposições combinadas, que têm ação indutora. Ao se utilizar a fotoproteção somente depois da queimadura, o que acontece, com bastante freqüência, pois é comum os pacientes só se lembrarem do protetor solar após uma primeira e intensa exposição, há aumento do risco de câncer. Os fotoprotetores podem, nesse caso, já com a pele mais sensível, alterar o ambiente, tanto inter- quanto intracelular, atuando assim como carcinógenos promotores, e, por essas razões, o FDA (Food and Drug Administration) questiona atualmente a eficácia e estuda uma regulamentação para a utilização dos fotoprotetores.

A fotocarcinogênese é um processo extremamente complexo, com vários dos efeitos da radiação ultravioleta ainda por elucidar, principalmente para o carcinoma basocelular, pois não existe um modelo eficiente, como ocorre com o carcinoma espinocelular, que pode ser provocado em várias espécies de animais, podendo-se dessa maneira estudar a importância de outros fatores associados, tanto locais quanto sistêmicos.

De grande importância também é o fenômeno de regressão tumoral que ocorre após a instalação do câncer. Isso poderia explicar o fato de que, no carcinoma basocelular in vitro, há duplicação do número de células em nove dias, enquanto, in vivo, seu crescimento é bastante lento. Nos imunossuprimidos, os carcinomas basocelulares são muito mais agressivos, parecendo haver bloqueio do fenômeno de regressão nesses pacientes. Os mecanismo dos quais o organismo dispõe para essa regressão parecem ser a eliminação trans-epidérmica; a apoptose, através da qual ocorrem alterações citoplasmáticas e nucleares, levando à auto-destruição de uma célula ou grupo, com morte celular e sua deleção do tecido, sem prejuízo das vizinhas; as células NK (natural killer); o infiltrado inflamatório linfocitário; e o aumento de células de Langerhans, levando à maior resposta imunológica celular.

A carcinogênese é, sem sombra de dúvida, processo multifatorial induzido e modulado por inúmeros fatores endógenos e exógenos, muitos ainda a descobrir e confirmar, sendo seu estudo da maior importância para a prevenção do câncer. Ainda há muito a pesquisar e elucidar sobre seus estágios bastante complexos, estando a Ciência apenas no início dessa investigação.

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